Perdidos em Amsterdã

Por Bárbara Fonseca

Já era quase de madrugada e dentro de algumas horas sairia o nosso voo de Madri com destino a Amsterdã. Íamos passar dez dias em outro país e, mais uma vez, não tínhamos nada planejado. Essa viagem, na verdade, só aconteceu porque a irmã do Eric, que vive em Amsterdã há alguns anos, estava de férias na Espanha e, gentilmente, nos deixou a chave de seu apartamento para passarmos alguns dias.

Mas voltemos à sequência de fatos da noite anterior à viagem. Damos uma última olhada nas mochilas, comemos e vamos à cama. Tudo segue conforme o script até o momento em que o Eric resolve descer ao bar dos seus pais, localizado exatamente embaixo de sua casa, para resolver um problema cujos detalhes não vêm ao caso, mas o seu desfecho sim: a mão direita quebrada, bem no meio da noite.

“Mantemos a viagem?”, pergunto ao vê-lo saindo da sala do ortopedista com o braço engessado. “Sim, é claro!”, me responde ele, como se não entendesse o motivo da pergunta. Voltamos à casa um pouco desanimados, mas com a certeza de que ainda iríamos rir muito daquela situação. Poucas horas depois já comprovaríamos nossa teoria com gargalhadas que até hoje nos acompanham.

Esta nova situação me obriga a riscar o primeiro item de uma modesta lista de coisas que eu queria fazer em Amsterdã: percorrer a cidade de bicicleta, atravessando suas pontes e túneis, como já havia visto tantas vezes em fotos e vídeos. Tudo bem quanto a isso, afinal de contas, poder viajar, em si, já é um previlégio.

Me dou conta então, já no avião, de que não sabia quase nada a respeito do lugar para onde estava indo. A verdade é que, até aquele momento, meu conhecimento sobre a Holanda se reduzia a clichês: bicicletas, maconha, moinhos de vento, a camisa laranja da seleção de futebol, aquele sapato de madeira engraçado que a gente sempre vê desenhado em pratos decorativos, dentre outras amenidades.

Eu não imaginava, por exemplo, que Amsterdã abriga cerca de 60 museus, o que faz dela a cidade com maior densidade de museus por habitantes do mundo. Entre eles estão a Casa da Anne Frank e o Museu Van Gogh, este último o único que visitei. O lugar proporciona não só uma imersão à obra do artista durante toda a sua carreira, quanto ao seu conturbado universo. Uma experiência que transcende explicações lógicas.

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O Van Gogh Museum é um dos mais de 60 museus de Amsterdã

“- Cuidado com a bicicleta!”

Esta talvez tenha sido uma das frases que mais escutei do Eric durante a viagem. Também pudera.  Amsterdã abriga 880 mil bicicletas, número maior que o de habitantes, que é de 820 mil. Apenas nos arredores da Amsterdam Centraal, estação de trens que conecta o Centro da cidade ao aeroporto, são 10 mil vagas disponíveis para as magrelas, transformando o estacionamento em uma espécie de instalação artística moderna a céu aberto. Nunca havia visto algo parecido.

Não é difícil deduzir, então, que é preciso ter atenção ao circular a pé pela cidade. Olhar para os dois lados, apurar os ouvidos e não se atrever a ocupar as ciclovias são, mais do que meras recomendações, itens obrigatórios de um manual para sobreviver nesta cidade. Vai por mim, você não vai querer bater de frente com um ciclista por lá.

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Bicicletas, definitivamente, fazem parte do conjunto paisagístico local

Por dentro dos coffeeshops

Antes mesmo de deixarmos as mochilas em casa, o Eric se encarregaria de me apresentar a um universo bem característico da Holanda: o dos coffeeshops. A peculiaridade e fama destes estabelecimentos estão no fato de serem eles os únicos “vendedores autorizados” de maconha e haxixe no país. Mas afinal de contas, como funciona isso?

Bom, ao contrário do que muita gente pensa – inclusive eu pensava – a legislação da Holanda está longe de promover a legalização da maconha, como é o caso do nosso vizinho Uruguai (primeiro país do mundo a regulamentar toda a cadeia de produção e consumo da cannabis).

O que existe na Holanda, na verdade, é uma política de tolerância ao uso recreativo da cannabis. Isso começou nos anos 70, quando o governo decidiu diferenciar as chamadas drogas leves (soft drugs – haxixe, maconha, remédios para dormir e sedativos) das drogas pesadas (hard drugs – cocaína, heroína, ecstasy etc). Desta maneira, se descriminalizaria os usuários do primeiro grupo, focando os esforços no combate ao segundo e ao crime organizado.

Na prática, significa que holandeses e turistas podem consumir drogas leves desde que respeitem algumas regras e não perturbem a paz local. Uma das normas é restringir a venda da cannabis aos coffeeshops, que hoje totalizam cerca de 160 endereços somente em Amsterdã. A venda está limitada a cinco gramas por pessoa ao dia, mas a quantidade de erva em estoque de cada estabelecimento não pode ultrapassar 500 gramas.

Além de comercializar a droga, os coffeeshops também permitem que os usuários fumem em suas dependências, oferecendo, inclusive, acessórios para enriquecer a experiência, como bongs e vaporizadores de mesa. Já a venda e o consumo de bebidas alcóolicas nestes locais estão totalmente proibidos.

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Alguém aí falou em fumaça?

Da antipatia à paranóia em uma tragada

Vou ser sincera. Quando entrei no Barney’s, primeiro coffeeshop que visitamos em Amsterdã, senti preguiça. Os olhares apáticos dos jovens frequentadores daquele ambiente extremamente cool me fizeram sentir em uma espécie de Starbucks com cheiro de maconha. É provável que este cenário anime muita gente, mas não é o meu caso.

No balcão, os atendentes orientavam a freguesia quanto aos atributos da mercadoria em estoque. Em um cardápio informatizado, exibido na tela de um tablet, podíamos escolher, levando em conta aspectos como sabor e efeitos colaterais, qual o baseado queríamos para aquela tarde. Basicamente, há dois tipos de erva: a indica, que causa efeito relaxante, e a sativa, responsável por provocar euforia. Daí é só dizer se você quer o fumo solto ou já enrolado e desembolsar uma pequena fortuna que, neste coffeeshop, pode variar de 12 a 80 euros a grama.

Não me lembro o nome da variedade sativa que fumamos neste dia, mas posso dizer que bastou uma tragada para que minha antipatia inicial se convertesse em paranoia. Olhava para todas aquelas pessoas descoladas ao meu redor, sentadas com suas coca-colas, e sentia que, a qualquer momento, eu seria a responsável por romper a ordem local: derrubaria algo, tropeçaria nas escadas ou esbarraria em alguém.

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Barney´s é um dos coffeeshops mais badalados de Amsterdã /Foto: http://www.barneysamsterdam.com

Para minha sorte, já nos próximos dias, nos seguintes coffeeshops que visitaríamos, não me sentiria mais dessa maneira. Em alguns deles, como o Boerejongens, eu até me permiti ficar bem à vontade. Este lugar, aliás, foi uma grata descoberta que fizemos em uma de nossas voltas infinitas pelo labirinto de ruas e canais que se forma na região central de Amsterdã.

Nos chamou a atenção a sua aparência, que nos remetia a uma antiga farmácias. Vários elementos nos levavam a esta comparação, como o piso em mármore, o balcão de madeira lustradíssimo, o uniforme formal dos funcionários e, claro, a prateleira montada do chão ao teto onde estavam dispostos os potes com as variedades de cannabis selecionadas pelo local.

Aos fins de semana, o local promove as chamadas smoke sessions, que consistem em encontros nos quais o dono, um tipo chamado Tony Balboa, apresenta diversos tipos de maconha e haxixe cultivados a partir das sementes produzidas pela pela Amsterdam Genetics. Para participar, basta se increver aqui.

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Para quem não quer fumar, os coffeeshops também oferecem os space cakes: bolinhos batizados com cannabis

Trufas mágicas: combustível para as pernas e para o riso

Lentamente, um pé de alface balança suas folhas salpicadas de água de um lado para o outro, enquanto a câmera enfoca todos os detalhes de sua anatomia. Na cena seguinte, é um bolo de chocolate que aparece em movimentos circulares, deixando em evidência o cremoso recheio que lhe escapa pelas laterais enquanto finos flocos de açúcar caem sobre sua superfície.

Antes que a próxima comida fosse exibida nas três telas que decoram a lanchonete, eu e Eric saímos de nosso estado de transe com as imagens e, a ponto de explodirmos em gargalhadas, levantamos da mesa e saímos às pressas para a rua.  “- Você viu isso? Estavam fazendo um filme pornô com comida!”, pergunto ao Eric, enquanto enxugava as lágrimas que brotavam dos meus olhos. Ele tentava recuperar o ar para me responder, mas só conseguia afirmar com a cabeça enquanto ria descontroladamente.

O episódio foi o estopim para as próximas cinco horas de uma noite  que poderia ser resumida em caminhadas em círculo, risadas, reflexões filosóficas e cerveja. Uma história que começou cerca de 45 minutos antes do ocorrido na tal lanchonete, quando decidimos experimentar as famosas trufas mágicas de Amsterdã. Trata-se de um fungo cujo principal componente psicoativo é a psilocibina, mesmo elemento encontrado nos cogumelos alucinógenos.

O produto é vendido livremente em Amsterdã, nas chamadas smart shops. Compramos a nossa em uma loja na Nieuwendijk, um calçadão repleto de comércio e turistas, bem no coração da cidade. A vendedora, que era mexicana, foi bastante solícita em nos explicar os efeitos, nos orientar para evitarmos bad trips e nos recomendar a melhor opção entre as diversas variedades vendidas na loja.

Não posso dizer que seguimos à risca as recomendações da moça, mas tudo deu certo ao final. Após cinco horas de viagem, entre bares dos quais fomos expulsos – ou pensamos ter sido – as 247 vezes em que passamos pela mesma praça e a constatação de que não nos encaixamos na sociedade holandesa, conseguimos, por fim, chegarmos a casa e dormir. No dia seguinte não tivemos ressaca, mas passaríamos o resto da viagem arrebatados por flashbacks de lugares em que estivemos naquela noite, mas que não fazíamos a menor ideia de onde estavam.

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Assim são vendidas as trufas pela página http://www.magictruffles.com

Larica e descanso, por favor

A culinária não é um dos aspectos mais emocionantes da cultura holandesa. No entanto, é na mesa que Amsterdã confirma a posição de uma das cidades mais cosmopolitas do mundo. Infelizmente, não conseguimos desfrutar deste vasto cardápio, uma vez que nossa loucura e falta de dinheiro nos levaram, quase sempre, aos chamados snack bar, ou, em bom português,  às lanchonetes.

Uma das mais tradicionais, com quase 80 anos de história, é a FEBO, que se destaca mais por sua forma de organização do que pela qualidade de seus produtos. Ali, o pedido é retirado pelo próprio consumidor diretamente de pequenos compartimentos protegidos por uma portinha de vidro. Após escolher o seu lanche e colocar o dinheiro no local indicado, a porta se abre como num passe de mágica. Em toda Holanda há mais de 60 unidades da FEBO.

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Rede FEBO é a mais pura definição do fast food/ Foto: http://www.holland.com

Outra dica de larica é a bomba calórica kapsalomuma invenção holandesa a partir da carne de kebab, o espeto de carne em formato de cone  encontrado em lanchonetes turcas. O prato consiste em camadas alternadas de batata frita, carne, queijo gouda derretido, salada, molho de alho e molho picante. O primeiro que comemos nos desceu bem apetitoso, mas depois do terceiro percebemos que tínhamos que parar por ali.

Ainda para quem está com baixo orçamento, vale a pena passear pelos supermercados, se abastecer e desfrutar de uma refeição ao ar livre nos muitos parques e praças da cidade. Estivemos no Voldelpark, um dos mais populares de Amsterdã, com 470 mil metros quadrados. Não foi exatamente um exemplo de programa saudável, mas pelo menos experimentamos nossa loucura em outro ambiente. Saudável mesmo foi a volta para casa, onde pudemos dar um descanso aos nossos corpos. Já a cabeça…

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Parques de Amsterdã durante o verão: real ocupação do espaço público

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Kapsalom: bomba calórica e larica perfeita

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Supermercados são boas opções para economizar. Só evite ir fumado e fazer uma compra como esta para o almoço

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Em toda Amsterdã, são mais de 100 quilômetros de canais. Charme e convite a se perder pela cidade

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2 comentários sobre “Perdidos em Amsterdã

  1. Muito Bom!
    Eu gostei muito da cidade e dos museus.
    Mas me lembro de muito pouca coisa dos dias que passei lá. Rs
    E não lembro como chegar na maioria dos lugares onde estive. Nem mesmo no hotel onde me hospedei. Lembro que era dificílimo para mim achar a rua do hotel. E quando eu a encontrava, errava a direção e ia para o lado contrário.
    Mas tudo isso contribui pra Amsterdam ser uma experiência inesquecível, ne?

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    1. Olá Luis! Obrigada pela visita ao blog! Pois é, eu tive muita dificuldade em me orientar também. Fiquei imaginando como seria se estivesse sozinha de bicicleta, Acho que estaria lá até hoje tentando encontrar a casa..hahahha.. Este “estar perdido” com certeza faz parte do charme da cidade. Gostei bastante! Bjos

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