O ovo e a cozinha espanhola: convite a um respiro nestes dias de quarentena

Por Bárbara Fonseca

Por aqui na Espanha entramos, hoje, em nossa segunda semana de quarentena obrigatória. Se você quiser saber mais sobre esta situação, basta clicar aqui e ler o post que escrevi anteriormente sobre o assunto. A medida faz parte de um estado de alarme decretado pelo governo para enfrentar a pandemia do novo coronavírus. Uma doença que, literalmente, está obrigando o mundo a parar, inclusive o Brasil.

Em meio a angústias inevitáveis, cada um busca a melhor maneira de encarar o seu confinamento em casa. E não há uma fórmula pronta para isso. Somos únicos em nossa essência e forma de ver o mundo. E mesmo em condições adversas como as que estamos agora, há uma verdade da qual não podemos nos esquecer: existem muitas maneiras de viver.

Para mim, a combinação de cozinha, escrita, trabalhos freelancer para o Brasil e atividade física tem sido como um bálsamo. E este blog, concebido para ser uma ponte que conectasse realidades ao redor do mundo, agora é, também, uma janela. Através da qual eu posso ver e se vista. E por onde o ar pode entrar, permitindo à gente, por que não, respirar com um pouco mais de leveza.

Por isso, resolvi tirar da gaveta de rascunhos um post sobre culinária espanhola com o qual eu vinha trabalhando antes da chegada deste vírus às nossas vidas. Aproveitei o gancho para, neste fim de semana, preparar uma das receitas das quais eu falo no texto e, acreditem, foi uma experiência divertida. Agora que vocês aí do Brasil terão que passar mais tempo em casa, lhes proponho, junto a visitantes de outras partes do mundo,  a esquecer por um momento a loucura lá de fora e vir comigo para tomar ar puro, deixando-se envolver pelo aroma das panelas e sabor dos pratos. Vamos?

O ovo na cozinha espanhola

Se eu te perguntasse qual o primeiro prato que vem à sua cabeça ao pensar na gastronomia da Espanha, seguramente a paella seria a resposta mais rápida, não é mesmo? Mas eu duvido que, em algum momento, você poderia imaginar que o ovo – sim, o ovo – também goza de um lugar de destaque na cozinha das bandas de cá.

Comecei a refletir sobre esta teoria ao me dar conta da onipresença de uma certa receita no dia a dia dos espanhóis. Das estufas dos bares às padarias, passando pelas geladeiras de supermercado – em sua versão industrializada -, a tortilha de batata (tortilla de patata) é praticamente uma unanimidade nacional. Feita basicamente com ovos e batatas, a receita desta omelete turbinada pode ser apreciada no café da manhã, no piquenique, como merenda e, obviamente, como uma tapa para acompanhar a caña gelada, que é como chamam o chope por aqui.

Concluí, então, que por aqui, o ovo é mais do que um ingrediente complementar da cozinha ou uma opção rápida para matar a fome. Mais do que isso, ele pode ser a estrela principal da mesa ou a cereja do bolo de alguns dos pratos ícones da cozinha espanhola, como mostrarei abaixo.

Em cada iguaria, vou deixar um link que vai encaminhar a páginas espanholas de culinária, onde você poderá aprender mais sobre o preparo de cada uma delas. Apesar de estar em castelhano, busquei links que trouxessem fotos e vídeos, já que as receitas, em si, não são complexas, apenas o preparo é que contém alguns detalhes. Aproveito para já adiantar o meu pedido de desculpas para o caso de algum espanhol que leia o post julgar equivocada a minha seleção de receitas. É notório que, assim como ocorre em muitas regiões do Brasil, o território culinário na Espanha é palco paixões e polêmicas, algumas tão acirradas como o futebol.

Mas vou assumir o risco, certa das minhas melhores intenções. Dito isso, comecemos, então, a primeira viagem do Posso Provar? pelas panelas espanholas. Com vocês, o ovo:

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Testes com tortilha no último fim de semana. Foto: Eric Pana

 

Tortilla de patatas

Um clássico das mesas, pode-se dizer que a tortilla divide a sociedade espanhola em categorias. Há, por exemplo, os cebollistas, ou seja, os defensores do uso da cebola em seu preparo. Do lado totalmente oposto, estão os que consideram uma heresia o uso de tal ingrediente na receita. Há, também, divergências quanto ao ponto de cozimento dos ovos: mais coalhados ou pouco cozidos? A verdade é que, provavelmente, seja mais fácil chegar a um acordo quanto à independência da Catalunha do que sobre os dilemas gastronômicos relacionados à tortilla.

Mas vamos ao que interessa: a receita. Primeiramente, as batatas, cortadas em nacos ou rodelas, devem ser fritas. No mesmo óleo, fritar a cebola, caso você seja desta turma. Bata, então, os ovos (me deram a dica de bater com uma colher, para que fique esponjoso) e acrescente as batatas e demais ingredientes desejados. Agora, o desafio será no fogo, a partir da habilidade de cada um com o manejo da frigideira. A dica para dar a volta na tortilha é usar um prato para vira-la e, assim, poder doura-la dos dois lados. 

O tempo de frigideira vai depender do ponto desejado, como você pode ver ao clicar na receita completa. A famosa tortilla de Betanzos, uma cidade na comunidade da Galícia, no Norte do país, tem consistência mais líquida, praticamente uma fina camada de omelete sobre um caldo de gemas. Já a de Córdoba, em Sevilha, no Sul, é mais firme e homogênea, se destacando pela altura que pode alcançar.

Em todo o país, há variadas receitas de tortillas, das mais clássicas às mais modernas. Há quem acrescente cebola caramelizada, carne moída, embutidos e até ingredientes sofisticados, como trufa e queijo de cabra. Para servi-la, o mais comum é acompanha-la com pão, seja como um sanduíche, em uma baguete inteira, ou cortada em fatias, os chamados pinchos.

Neste link, você será encaminhado para um vídeo bacana do site Comidista, o caderno de gastronomia do jornal El País: clique aqui

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Tentei dar um ponto mais cozido à tortilha, mas sem perder a cremosidade. Usei seis ovos

Huevos rotos

Temos aqui um outro exemplo do bem-sucedido casamento entre ovos e batatas fritas. Os huevos rotos surgiram e se popularizaram no cenário da boemia espanhola, sendo figura tarimbada no cardápio dos bares mais tradicionais do país. Conta-se que a receita nasceu, despretensiosamente, em uma taberna de Madri: a Casa Lucio. O local, que leva aberto há quatro década, não só é uma entidade gastronômica local, como também um atrativo turístico da capital espanhola, tendo os huevos rotos como a estrela principal.  

O conceito do prato é bem simples: em uma travessa, monta-se uma cama de batatas fritas. Sobre ela, se acomodam os ovos fritos com a gema mole – uma média de três por porção. A montagem pode ser coroada com fatias de embutidos, sendo o jamón espanhol- famoso presunto curado daqui – o mais usado. Antes de comer, com uma colher ou garfo, deve-se romper as gemas do ovo, para que o líquido se escorra sobre as batatas, formando uma mescla de sabores e texturas deliciosa.

Agora vamos aos detalhes importantes.  O primeiro é a batata: nada de usar congelada. No Brasil, infelizmente, este produto industrializado medonho tomou conta da alimentação dentro e fora do lar, num cenário bem diferente ao da Espanha, onde a batata natural resiste com bravura. Para frita-la, o óleo deve estar quente, em quantidade suficiente para submergi-la. Mas atenção: as batatas devem ser retiradas do fogo antes que comecem a torrar. Nos interessa que elas fiquem, digamos, mais cozidas do que fritas. Tampouco devem estar sequinhas, já que a ideia é que haja, sim, um pouco de azeite no prato, para dar consistência às gemas.

Quanto aos ovos, é importante que as claras cozinhem, formando aquela deliciosa casquinha marrom nas bordas. Já as gemas devem ser indiscutivelmente moles, embora eu saiba de muita gente, como minha mãe, que torceria o nariz só de imagina-lo.

Neste link, você será direcionado para a página Recetas de Rechupete, outra página de receitas aqui da Espanha bem didática: clique aqui

Revueltos

Se você adora ovos mexidos no café da manhã, vai ficar surpreso ao saber que, aqui na Espanha, este é o horário no qual o prato tem menor popularidade. Por outro lado, diferente do Brasil, coisa mais comum é encontrar ovos mexidos, aqui chamados de huevos revueltos, no cardápio de bares e restaurantes.

Com diversas variações – que vão de bacalhau a cogumelos – os huevos revueltos podem ser encontrados no cardápio sob a forma de tapas, que são os pequenos tira-gostos que acompanham a bebida na Espanha, entre as opções de primeiro prato nos menus do dia (espécie de PF daqui) ou, ainda, como porção para complementar algum outro prato.

Mas o que há de tão especial em simples ovos mexidos para justificar sua presença nos cardápios espanhóis? O diferencial, como mencionei acima, está nos ingredientes acrescentados ao seu preparo. Podem ser vegetais, de acordo com a temporada. No outono, por exemplo, é comum os revueltos de setas (cogumelos). Já na primavera, temos os revueltos de espárragos, os aspargos. Os embutidos, uma paixão nacional, também têm seu lugar entre os huevos revueltos, assim como o bacalhau e o camarão.

Quanto ao preparo dos ovos, não há mistério. É necessário bate-los antes, mas sem exagero. Uma boa frigideira é fundamental, para que não se agarre. Há quem prefira usar manteiga, outros que defendam o azeite de oliva, mas nada que gere polêmicas como as mencionadas nas receitas anteriores.

Neste link, você será direcionado ao site do jornal La Vanguardia, onde encontrará uma receita de huevos revueltos com cogumelos: clique aqui

Duelos y quebrantos

Uma das coisas mais bonitas da cozinha espanhola é que quase nenhuma receita tradicional se reduz à sua mera existência. Através delas se contam histórias, se ativam lembranças de quem come e de quem prepara, se mergulha nas artes, na política, na geografia. E isso tudo pode acontecer, até mesmo, com um singelo prato de ovos mexidos com toucinho e linguiça, ingredientes da receita duelos y quebrantos. 

Ninguém sabe, ao certo, a origem deste prato tradicional da região de Castilla- La Mancha, na área central da Espanha. O que se sabe é que, através da literatura, gerações após gerações vêm conhecendo, desde o século 17, a sua existência. Entre as obras que lhe fazem referência, está a mais icônica do país: Don Quijote de la Mancha. O prato é citado logo nas primeiras páginas, quando Miguel de Cervantes apresenta o perfil do nosso herói através da sua alimentação semanal:

Una olla de algo más vaca que carnerosalpicón las más nochesduelos y quebrantos los sábadoslantejas los viernesalgún palomino de añadidura los domingos, consumían las tres partes de su hacienda (pp. 69-70)

A receita de nome curioso – e dramático, diga-se de passagem – (em tradução ao português, algo como luto e danos) também é citada na obra Las bizarrías de Belisa, do dramaturgo espanhol Lope de Vega, de 1634.

Seja por gosto ou por afetividade, duelos y quebrantos sobrevive na cozinha e imaginário desta região espanhola. Para o brasileiro, a reprodução do prato não poderia ser fiel ao sabor do que se prepara por aqui, devido às diferenças dos embutidos de cada país. O chorizo ibérico, usado na receita, possui um sabor particular, resultado de um tradicional processo de cura em especiarias, entre elas a páprica. De todo o modo, fica a a inspiração culinária e literária para deixar os seus ovos mexidos mais especiais.

Neste link, você será encaminhado para a página El Español, que traz o preparo da receita: clique aqui

Ensalada campera

É provável que toda família espanhola tenha a sua própria receita de ensalada camperaum clássico caseiro daqui, assim como é o nosso salpicão ou salada de maionese dos almoços de domingo. Também chamada de ensalada de verano, que em português significa salada de verão, o prato também brilha sob a forma de tapas, servido em pequenas porções em bares do país, sobretudo durante a estação mais quente do ano. Nesta época, quando os espanhois lotam as praias e piscinas públicas do país, a ensalada campera também marca presença nas bolsas térmicas, como opção prática e econômica de merenda. Te parece familiar?

Por ter o clima, em geral, bem definido, é comum que, na Espanha, muitos pratos assumam o nome da estação em que são mais populares devido aos ingredientes de cada temporada. No caso da ensalada campera, temos dois vegetais típicos do período de junho a setembro, época de calor no hemisfério norte: o tomate e o pimentão verde.

A receita não tem mistérios, mas o sabor vai depender da qualidade dos ingredientes – por isso é que ela é mais comum durante a temporada dos vegetais. Em um bowl, misturamos batatas cozidas, descascadas e cortadas em pedaços grandes, pimentão verde e vermelho crus cortados em tiras, azeitonas pretas, tomate também cortado de forma grosseira, atum, cebola crua e ovos cozidos, também em pedaços grandes. Para temperar, usa-se sal, vinagre e azeite.

Nada mais simples e refrescante para suportar temperaturas que podem ultrapassar de 40 graus, em largos dias de Sol até às 10 da noite. Mas este é tema para uma outra história!

Ao clicar neste link, você será direcionado ao blog Directo al Paladar, que traz uma receita mais similar às saladas campeiras que comi por aqui: clique aqui

Até a próxima!

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Esta foi minha primeira incursão no maravilhoso mundo da cozinha espanhola. Agora quero saber de você: o que achou das receitas apresentadas neste post? Se você conhece a Espanha e já provou algum destes pratos, será um prazer ler sobre a sua experiência! E para saber mais sobre a minha trajetória por aqui e por outros locais em que vivi nos últimos anos, te convido a passear pelos outros posts do blog e a me seguir no Instagram: barbara_possoprovar

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